Noções fundamentais sobre o Tribunal Penal Internacional — TPI
Ao final da Conferência de Roma de 1998 e com a aprovação de seu Estatuto, surge o Tribunal Penal Internacional, instituição permanente, com jurisdição sobre pessoas[1] responsáveis por crimes de maior gravidade com alcance internacional. Embora seja parte do Sistema Nações Unidas, possui independência, orçamento próprio e é composto por Estados partes que não se confundem, necessariamente, com os membros da ONU.
Sua existência se justifica a partir da necessidade de contribuir para a prevenção da ocorrência de violações dos direitos humanos e direito internacional humanitário. O TPI tem, ainda, a incumbência de coibir ameaças contra a paz e a segurança internacionais. Possui sede na Haia — Países Baixos — e iniciou suas atividades apenas em 2002, quando do depósito da 60ª ratificação do Estatuto.
Atualmente, o Estatuto de Roma conta com 123 estados partes, divididos da seguinte forma:
- 28 países latino-americanos e caribenhos;
- 33 países africanos;
- 19 da Ásia e Pacífico (a Malásia foi o 123º país a se tornar estado-parte, em 2019);
- 18 da Europa do Leste; e
- 25 da Europa e outros.
O TPI tem como competência o julgamento dos seguintes crimes:
a) Genocídio;
b) Os crimes contra a humanidade;
c) Os crimes de guerra; e
d) Os crimes de agressão.
Conforme a inscrição em seu preâmbulo, a jurisdição do TPI é complementar à dos Estados, em outras palavras, significa dizer que a responsabilidade primeira em coibir ameaças à paz e segurança internacionais é dos próprios Estados, cabendo a eles, ainda, exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais. A jurisdição do TPI se inicia a partir do momento em que se constata a incapacidade — ou a falta de intenção -[2] dos Estados de conduzir a persecução penal dos acusados.
Atualmente o TPI analisa 10 situações, divididas entre investigações preliminares, investigações e casos. São eles:
1. Darfur/Sudão;
2. Mali;
3. Quênia;
4. República Centro-Africana (03 casos);
5. República Democrática do Congo;
6. Uganda;
Casos preliminares:
7. Nigéria;
8. Venezuela.
Definição do Crime de Guerra no Estatuto
Em seu artigo 8º, consta larga lista com condutas que se enquadram na definição de crime de guerra. Tomo a liberdade de copiá-los abaixo:
Art. 8º
Dos crimes de Guerra
i) Homicídio doloso;
ii) Tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas;
iii) O ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde;
iv) Destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária;
v) O ato de compelir um prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga;
vi) Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial;
vii) Deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade;
viii) Tomada de reféns;
b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes atos:
i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades;
ii) Dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares;
iii) Dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados;
iv) Lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa;
v) Atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares;
vi) Matar ou ferir um combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo mais meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido;
vii) Utilizar indevidamente uma bandeira de trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves;
viii) A transferência, direta ou indireta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território;
ix) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares;
x) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de uma parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar, nem sejam efetuadas no interesse dessas pessoas, e que causem a morte ou coloquem seriamente em perigo a sua saúde;
xi) Matar ou ferir à traição pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigo;
xii) Declarar que não será dado quartel;
xiii) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que tais destruições ou apreensões sejam imperativamente determinadas pelas necessidades da guerra;
xiv) Declarar abolidos, suspensos ou não admissíveis em tribunal os direitos e ações dos nacionais da parte inimiga;
xv) Obrigar os nacionais da parte inimiga a participarem em operações bélicas dirigidas contra o seu próprio país, ainda que eles tenham estado ao serviço daquela parte beligerante antes do início da guerra;
xvi) Saquear uma cidade ou uma localidade, mesmo quando tomada de assalto;
xvii) Utilizar veneno ou armas envenenadas;
xviii) Utilizar gases asfixiantes, tóxicos ou outros gases ou qualquer líquido, material ou dispositivo análogo;
xix) Utilizar balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo humano, tais como balas de revestimento duro que não cobre totalmente o interior ou possui incisões;
xx) Utilizar armas, projéteis; materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos indiscriminados, em violação do direito internacional aplicável aos conflitos armados, na medida em que tais armas, projéteis, materiais e métodos de combate sejam objeto de uma proibição geral e estejam incluídos em um anexo ao presente Estatuto, em virtude de uma alteração aprovada em conformidade com o disposto nos artigos 121 e 123;
xxi) Ultrajar a dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
xxii) Cometer atos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea f) do parágrafo 2o do artigo 7o, esterilização à força e qualquer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave às Convenções de Genebra;
xxiii) Utilizar a presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares;
xxiv) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, assim como o pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional;
xxv) Provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra;
xxvi) Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades;
c) Em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, as violações graves do artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos atos que a seguir se indicam, cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo:
i) Atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura;
ii) Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes;
iii) A tomada de reféns;
iv) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como indispensáveis.
d) A alínea c) do parágrafo 2o do presente artigo aplica-se aos conflitos armados que não tenham caráter internacional e, por conseguinte, não se aplica a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante;
e) As outras violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm caráter internacional, no quadro do direito internacional, a saber qualquer um dos seguintes atos:
i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades;
ii) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional;
iii) Dirigir intencionalmente ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida pelo direito internacional dos conflitos armados aos civis e aos bens civis;
iv) Atacar intencionalmente edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares;
v) Saquear um aglomerado populacional ou um local, mesmo quando tomado de assalto;
vi) Cometer atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea f do parágrafo 2o do artigo 7o; esterilização à força ou qualquer outra forma de violência sexual que constitua uma violação grave do artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra;
vii) Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades;
viii) Ordenar a deslocação da população civil por razões relacionadas com o conflito, salvo se assim o exigirem a segurança dos civis em questão ou razões militares imperiosas;
ix) Matar ou ferir à traição um combatente de uma parte beligerante;
x) Declarar que não será dado quartel;
xi) Submeter pessoas que se encontrem sob o domínio de outra parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar nem sejam efetuadas no interesse dessa pessoa, e que causem a morte ou ponham seriamente a sua saúde em perigo;
xii) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam;
O Brasil e o TPI
O Brasil é um país defensor histórico do Direito Internacional. Foi na Segunda Conferência de Paz de Haia, em 1907, onde se ventilou a possibilidade de que fossem criados tribunais de caráter permanente: um de presas e outro de arbitragem. Entretanto, nos projetos apresentados pelas grandes potências, apenas as potências industriais ou militares teriam a possibilidade de nomear juízes permanentes, além da obrigatoriedade da arbitragem, fato que colocaria as grandes potências em posição de superioridade.
Foi graças à atuação de Rui Barbosa em nome da diplomacia brasileira que, ao invocar a necessidade de instauração de um princípio de igualdade entre os Estados soberanos, Barbosa agiu de forma a criar uma lógica de resistência à depreciação da América Latina. O princípio da igualdade sagrou-se vitorioso e a constituição do tribunal de arbitragem foi aprovada sem que a sua composição ficasse determinada pelas grandes potências.
Esse foi, certamente, um marco importante para a força do Brasil em sua atuação multilateral e na defesa intransigente do Direito Internacional. O país apoiou a criação do TPI por entender que uma corte penal eficiente, imparcial e independente representaria grande avanço na luta contra a impunidade pelos mais graves crimes internacionais. A diplomacia nacional, representando o governo brasileiro, teve atuação ativa nos trabalhos preparatórios[3] e nas negociações durante a Conferência de Roma de 1998.
O Brasil depositou seu instrumento de ratificação do Estatuto em 20 de julho de 2002, tendo sido o tratado incorporado ao ordenamento jurídico nacional em 25/09/2002, por meio do Decreto 4.388. O país segue exercendo papel de liderança nos encontros em que os estados partes analisam possibilidades de ajustes com vistas a promover a consolidação internacional do TPI[4].
[1] Diferentemente da Corte Internacional de Justiça, que julga os Estados, o Tribunal Penal Internacional tem como competência o julgamento de Pessoas Físicas.
[2] De acordo com o Direito Internacional, entende-se por falta de intenção a ação do Estado em proteger a pessoa acusada, a demora injustificada dos procedimentos ou a ausência de procedimentos independentes ou imparciais,
[3] Atividades que antecedem a realização de Conferências, reuniões ou outros atos bilaterais, multilaterais ou plurilaterais.
[4] Vide as reuniões de 2010, em Uganda, referentes as emedas relativas ao crime de agressão.