História Diplomática Brasileira para a América do Sul: o caso da Lagoa Mirim de 1909.
Há 111 anos a diplomacia brasileira dava importância passo na redução das assimetrias regionais e, consequentemente, na solidificação dos relacionamentos bilaterais da América do Sul. A assinatura do tratado Lagoa Mirim, com o Uruguai, marca o amadurecimento de uma política exterior voltada para nossa circunstância e para a superação de rivalidades históricas que ainda eram extremamente recentes.
É impossível avaliar a gestão do Barão do Rio Branco sem pensar nas questões de limites. Ao longo de seus 10 anos como ministro das relações exteriores, Paranhos atuou com grande ênfase na conclusão de lides pendentes relacionadas às fronteiras nacionais. Talvez seu maior feito foi ter conseguido solucionar essas questões por meio da negociação e outros instrumentos diplomáticos. Basta um breve olhar sobre a história da América do Sul para entender a grandiosidade desse feito. Eram muitos os ressentimentos herdados de séculos passados e, sem dúvidas, este um dos grandes marcos da duradoura gestão do Barão do Rio Branco.
Além das questão de limites, Rio Branco incorporou ao pensamento diplomático moderno diversas formas de agir, a exemplo da própria solução pacífica de controvérsias, a não intervenção, a autodeterminação dos povos e a busca do melhor relacionamento com a América do Sul.
Talvez um dos casos mais emblemáticos de sua gestão para nosso entorno seja a negociação e assinatura do Tratado da Lagoa Mirim, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Chegar a um consenso no Prata — lugar de muitos conflitos históricos durante os séculos XVIII e XIX — não era tarefa simples, uma vez que a Chancelaria brasileira precisaria lidar com fatores internos e externos. A construção de apoio político junto ao Parlamento para aprovação do tratado, da opinião pública e do próprio Ministério das Relações Exteriores. Do ponto de vista externo, era necessário negociar com Uruguai e Argentina a fim de encontrar bons termos, uma vez que o acordo trataria de navegação e comércio, temas espinhosos naquele período.
Barão do Rio Branco tomou posse no cargo de Ministro das Relações Exteriores em 1º de dezembro de 1902, e já em seu discurso, deu pistas dos caminhos que a ação diplomática brasileira percorririam: ‘’Não venho servir a um partido político: venho servir ao nosso Brasil, que todos desejamos ver unido, íntegro, forte e respeitado’’[1]. Para alcançar a unidade e projetar imagem de uma país forte e respeitado, nossa política exterior se dividiu, basicamente, em 4 linhas de atuação:
- A busca de uma supremacia compartilhada na América do Sul;
- A restauração do prestígio internacional do Brasil;
- Intangibilidade da soberania nacional;
- Solução das lides fronteiriças.[2]
Durante sua gestão (1902–1912), Rio Branco solucionou, sempre por meio do juízo diplomático, questões de limites com Bolívia (1903), Peru (1904/1909), Grã-Bretanha (1904)[3], Holanda (1906)[4], Colômbia (1907) e Uruguai (1909)[5]. Todas essas negociações abarcam as diretrizes de política externa acima citadas.
A opção pela América do Sul era inevitável, uma vez que, conforme leciona Celso Lafer, nosso entorno não é uma opção mas, sim, a circunstância de nosso ‘’eu’’ diplomático.[6] A partir da conformação dos limites territoriais, Rio Branco desconstruiu a imagem expansionista que os países vizinhos tinham em relação às políticas de fronteiras do Império, restaurou o prestígio internacional do Brasil, trouxe unidade ao território nacional, fato que garantia a soberania brasileira.
Sem dúvidas, a negociação mais complexa em termos de definição de limites foi a com a Bolívia para a incorporação do Acre. Foram inúmeras as pressões externas e internas, no entanto, focaremos aqui no outro extremo do país. A região do Prata representou enorme imbróglio desde os tempos coloniais.
Portugal e Espanha tiveram grandes dificuldades para estabelecer os limites das posses na região. Ainda no século XVII, Portugal estabeleceu a Colônia do Santíssimo Sacramento, a fim de estender suas fronteiras meridionais. O ato foi rapidamente contestado pela Espanha, tendo o governo de Buenos Aires tomado o território para os domínios da Coroa Espanhola.
Dentre idas e vindas ao longos dos séculos, a região passou aos domínios de Portugal e da Espanha diversas vezes. A título de exemplo, portugueses dominaram a região novamente de 1683 a 1705, quando os espanhois a tomaram e comandaram até 1715, quando foi devolvida a Portugal pelo Tratado de Utrecht. Em 1750, foi devolvida aos espanhois pelo Tratado de Madrid e, em 1760, as cláusulas do acordo foram desfeitas pelo Tratado de El Pardo.
Em suma, verifica-se que a história da região é naturalmente conflituosa. O último conflito expressivo foi a Guerra da Cisplatina (1825–1828), que teve como desfecho a Convenção Preliminar de Paz, cujas consequências se caracterizaram, dentre outras, na renúncia dos direitos de ambas as partes sobre a região e que naquele território se formasse um Estado independente e soberano, ou seja, a República do Uruguai.
A Questão da Lagoa Mirim
As relações diplomáticas entre os dois países se iniciam em 1828, com o fim da Guerra Cisplatina e a criação do Estado uruguiao fato que não significa, em uma primeira análise, relações totalmente cordiais. De 1828 a 1889, as relações entre os países foram de instabilidade.
Carlos Delgado de Carvalho e Rubens Ricupero são uníssonos ao afirmarem a instransigência por parte do império brasileiro no trato das questões com o Uruguai. Isso se deveu, em larga medida, às constantes tentativas de negociar tratados que dessem ao Brasil compensações territoriais. Nas palavras do primeiro autor, em razão dessa intransigência, as questões de limites entre os países levaram um século para atingir uma conclusão.[7]
Para Ricupero, com a constituição dos sistemas de tratados entre Brasil e Uruguai, o governo imperial rejeitou o traçado do Tratado de Santo Idelfonso (1777) e a conquista das missões do Uruguaia, e ainda impôs a Montividéu uma fronteira seca no rio Jaguarão e na Lagoa Mirim, fato que revelou a falta moderação no tratamento dispensado ao vizinho, uma vez que negou ao uruguaios a navegação nos trechos.[8]
Tal falta de cortesia só teve correção no Brasil republicano, na gestão do Barão do Rio Branco. Em 1909, Paranhos assina o último importante tratado de limites antes de morrer. De acordo com Delgado, tratava-se de um acordo justo e necessário, mas somente com o prestígio de Rio Branco seria possível formalizá-lo.[9]
De fato não seria simples, em um momento de consolidação do território nacional, abrir mão de uma parte dele em prol de outra nação. Parte da elite brasileira via, desde os tempos do Império, com preocupação e riscos à soberania nacional abrir mão de qualquer parte do território. Como disse o próprio Barão, em Exposição de Motivos enviada ao Presidente Nilo Peçanha sobre o Tratado da Lagoa Mirim:
‘’(…)alguns compatriotas nossos, mais exigentes, pretendiam naquele tempo não só que continuássemos senhores de toda a lagoa Mirim, mas também que procurássemos conseguir certa extensão das suas vertentes ocidentais, baseando-se na nossa ocupação bélica de 1737,13 reconhecida e sancionada pelo Tratado de 13 de janeiro de 1750’’[10]
Como dito anteriormente, era uma diretriz da política externa de Rio Branco a redução das assimetrias entre os países da região. No mesmo ano de 1909, houve a tentativa de se criar o projeto de ‘’Pacto ABC’’. O projeto consubstanciou-se no Tratado Cordial de Inteligência Política e de arbitramento entre Argentina, Brasil e Chile, as três maiores potências da região e que visava, em linhas gerais, assegurar a paz e estimular o progresso da América do Sul.
No caso do Uruguai, Rio Branco argumentava que com a criação de um espaço compartilhado entre os dois países, garantiria ao Uruguai a possibilidade de projetar-se internacionalmente, fato que favorecia não só o país, mas a toda a América do Sul, uma vez que, dentre outros ganhos, traria prosperidade a todos.
Desta forma, em 30 de outubro de 1909, em Petrópolis, Rio de Janeiro, foi assinado o Tratado da Lagoa Mirim, cujo propósito era estreitar ainda mais as relações entre Brasil e Uruguai e favorecer as relações de comércio e boa vizinhança. Para isso, o texto do acordo reviu e modificou as linhas de fronteira na lagoa mirim e no rio Jaguarão. Em outras palavras, o Brasil cedeu seus direitos de soberania a uma parte da lagoa e do rio a fim de corrigir intransigências passadas e garantir ao Uruguai a liberdade de navegação.
Os processos políticos por trás da assinatura desse tratado mostram que Rio Branco tinha grande sensibilidade diplomática, e sabia usá-la como ferramenta para resolver grandes questões políticas. Por isso, pode-se dizer com certeza que diplomacia é um instrumento político por meio do qual se coloca em prática a política exterior de um país.
Para o Benoni Belli [11], a atividade diplomática tem como núcleo central o juízo político. Desta forma, muito embora o conhecimento seja indispensável, o exercício de julgar fatos e conjunturas é indispensável para o processo de tomada de decisões.[12] Em outro artigo sobre a relevância do planejamento diplomático para a inserção internacional de um país, o Embaixador assevera:
‘’A elaboração de uma estratégia de inserção internacional por meio do esforço de planejamento diplomático deve lidar com incertezas internas e externas, que são seus condicionantes. As incertezas domésticas derivam da oscilação da conjuntura política e econômica, bem como da complexa construção de consensos.Esses são fatores cambiantes por natureza, que podem favorecer ou dificultar a definição de grandes objetivos(…)Em política externa, o fato de se lidar com um ambiente em que convivem várias soberanias é um complicador em relação às demais políticas públicas. Basta lembrar, a título ilustrativo, que os cálculos de política externa são afetados por multiplicidade de eventos internacionais que podem tomar direções inesperadas(…) (grifos meus).
As afirmações citadas acima confirmam a necessidade de juízo político no fazer diplomático. Isso porque, diferentemente da política interna, onde, em certos casos há brechas para eventuais previsões sobre comportamentos, a política internacional segue compassos distintos. O nível de previsibilidade é menor, deixando estreita margem para cálculos precisos.
Daí a importância do planejamento diplomático. É somente por meio dos consensos sobre como agir em determinados temas — e aí entra a importância do uso da história e de certa continuidade no modo de atuar — que uma política exterior pode ter maior êxito. E foi dessa forma que Rio Branco agiu no caso do Tratado da Lagoa Mirim.
Em um caso emblemático, onde um país demandava apenas e tão somente o direito de navegação e que acabou levando muito mais do que pedia — uma parte de território -, exigiu do Chanceler brasileiro construção de um amplo consenso interno, uma vez que, do ponto de vista jurídico, o Brasil tinha posse do território cedido.
O caso exigiu juízo político. Para Rio Branco, embora o direito estivesse ao lado do Brasil, a redução de uma assimetria histórica, traría diversos ganhos no curto e no longo prazo. Novamente na visão de Benoni Belli, esses ganhos não podem ser explicados apenas pelo conhecimento especializado, mas, sim, pelo discernimento político e pela visão estratégica da inserção do Brasil na região e no mundo.[13] Ou, como disse Delgado, Rio Branco reconheceu que o tema tratava muito mais de ‘’psicologia coletiva’’ do que de natureza jurídica.[14]
E é exatamente essa a visão que sugiro neste artigo: o conhecimento é indispensável para o fazer diplomático. O próprio Barão do Rio Branco comentou, certa vez, em carta destinada ao senador Frederico de Abrantes:
‘’Chancelaria deve ser uma Instituição de produção de conhecimento(…)meu programa consiste em criar um arquivo onde os empregados inteligentes encontrarão as armas de que necessitam para seus embates’’
Todavia, tão relevante quanto o conhecimento é o fino trato da política. Certos eventos não podem ser previstos com clareza e a forma como a diplomacia lidará com este ou aquele fator depende de um olhar político e não técnico. Em síntese, agir diplomaticamente é agir politicamente, mesmo quando os tomadores de decisões têm ao seu lado os melhores dossiês.
Outro caso emblemático da história diplomática brasileira ocorreu durante a crise das Malvinas, em 1982. O Chanceler da época Saraiva Guerreiro, valeu-se de recursos históricos para defender o direito à soberania argentina, mas também adotou o discurso de solução pacífica da controvérsia. Nas palavras de Ricupero, o Chanceler, com toda sua sensibilidade política, conseguiu passar sem maiores dificuldades pelo período. Não apoiou exageradamente à Argentina, nem tampouco usou de atitude hostil em um momento dramático para nosso vizinho imediato.[15]
O caso da Lagoa Mirim tem valor histórico para nossa diplomacia. Rio Branco conseguiu concluir todas as negociações de limites das quais participou apenas usando a negociação. Mais de cem anos após sua gestão, e da celebração do referido Tratado, ainda vemos que a ação diplomática nacional vale-se, e muito, do discernimento político.
Especialmente quando nos referimos ao nosso entorno geográfico, identificamos diversos casos pós-Rio Branco que obrigou ao Brasil ser menos ‘’técnico’’ e mais político. A exemplo, vimos o caso das Malvinas, apoio que é histórico e que data de 1833, ainda dos tempos do Império, em que se reconhecia, em prol de uma visão estratégica, a soberania argentina sobre as ilhas Malvinas e que precisou ser enfatizado em 1982 quando da invasão ao arquipélago. A 2019, anualmente, o Brasil defendeu a solução pacífica da controvérsia nos foros multilaterais apropriados.
Mais recentemente, já na década de 1990, o Brasil mediou a assinatura do Acordo Global de Paz entre Equadro e Peru, que consubstanciou-se na Declaração de Paz do Itamaraty. Este ato teve consquências políticas importantíssimas para o Brasil e para a região, a exemplo da demonstração para o mundo de que a América Latina havia atingido maturidade política para solucionar seus próprios conflitos, sem intervenção de outros continentes, fato que gerou imagem de região estável; favoreceu a integração regional entre o Mercosul e a região Andina, bem como uma maior cooperação amazônica, uma vez que haveria maior harmonia entre os povos.
No caso da Lagoa Mirim, o Brasil deu importante passo na solução de desconfianças históricas entre os países e inaugurou uma nova forma de fazer diplomacia. Do ponto de vista político, o fato teve tamanha importância que hoje há uma cidade com o no de Rio Branco na região.
Do ponto de vista do fazer diplomático, isso se confirma quando olhamos o art. 4º da Constituição Federal que, ao tratar das relações internacionais do Brasil, impôs diversos aspectos que compunham as diretrizes da política exterior de Rio Branco, a exemplo da não intervenção, solução pacífica de controvérsias e a busca para a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Em suma, não existem receitas prontas sobre como definir ações diplomáticas. Embora a História e a Constituição seja importantes balizas, fatos políticos, quase sempre, exigem respostas políticas para que prosperem.
[1] Ver em: http://www.funag.gov.br/chdd/index.php/ministros-de-estado-das-relacoes-exteriores/61-ministros-das-relacoes-exteriores/439-discurso-de-posse-do-barao-do-rio-branco
[2] CERVO, Amado Luiz. História da política exterior do Brasil.
[3] Então Guiana Inglesa.
[4] Então Guiana Holandesa, hoje Suriname.
[5] Tratado da Lagoa Mirim, que retificou o Tratado de 1851.
[6] LAFER, Celso. A indentidade internacional do Brasil.
[7] CARVALHO, Carlos Delgado de. História Diplomática do Brasil.
[8] RICUPERO, Rubens. A Diplomacia na construção do Brasil (1750–2016)
[9] CARVALHO, Carlos Delgado de. História Diplomática do Brasil.
[10] BRASIL. Obras do Barão do Rio Branco. Questão de Limites. Exposições de Motivos. FUNAG.
[11] BELLI, Benoni. Diplomacia e Discernimento Político: Reflexão acerca da natureza da atividade diplomática. Versão atualizada de artigo publicado originalmente na revista Política Externa (volume 21, número 3, jan/fev/mar 2013)
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] CARVALHO, Carlos Delgado de. História Diplomática do Brasil
[15] RICUPERO, Rubens. A Diplomacia na construção do Brasil (1750–2016)